Em setembro de 2023, foi alcançada uma vitória histórica para os direitos territoriais indígenas no Brasil quando o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a tese do marco temporal inconstitucional. Essa decisão foi celebrada como um avanço significativo na proteção dos territórios indígenas e na afirmação de seus direitos constitucionais.
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No entanto, esse progresso foi breve, pois a promulgação da Lei 14.701/2023, em dezembro de 2023, efetivamente restabeleceu a tese do marco temporal, impondo restrições rigorosas aos processos de demarcação de terras.
Em resposta à nova lei, várias ações judiciais foram ajuizadas, argumentando que ela contradizia a decisão anterior do STF. No entanto, em vez de declarar a lei inconstitucional ou reavaliá-la à luz da decisão anterior, o Ministro Gilmar Mendes decidiu suspender essas ações judiciais e tratar da questão primeiramente por meio de mediação e conciliação. A primeira audiência de conciliação ocorreu no início deste mês (5 de agosto).
Este informe revisa a evolução da tese do marco temporal no contexto da Lei 14.701/2023 e os desenvolvimentos subsequentes, lançando luz sobre a controvérsia em torno da abordagem atual adotada pelo STF.
Contexto Histórico e Jurídico do Marco Temporal
O marco temporal é uma tese jurídica no Brasil que estabelece uma data limite histórica para o reconhecimento e validação das reivindicações territoriais indígenas. De acordo com a tese, os direitos territoriais indígenas devem ser restritos a territórios que foram fisicamente ocupados ou reivindicados pelos povos indígenas no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Brasileira.
Perspectivas Conflitantes sobre o Marco Temporal
Os defensores da tese do marco temporal argumentam que ela oferece clareza e estabilidade nas disputas territoriais ao estabelecer um ponto de referência histórica fixo para o reconhecimento das reivindicações indígenas. Essa visão é frequentemente apoiada por ruralistas, interesses do agronegócio e certos atores políticos que sustentam que um limite temporal claro evita a expansão indefinida dos territórios indígenas e proporciona uma abordagem estruturada para a demarcação de terras. Eles argumentam que esse método facilita a resolução de disputas territoriais persistentes e promove a certeza jurídica no Brasil, que possui uma história complexa de conflitos de posse de terras.
Em contraste, críticos argumentam que o marco temporal restringe injustamente os direitos indígenas e desconsidera as injustiças históricas anteriores a 1988. Ao longo da história colonial e pós-colonial do Brasil, as terras indígenas foram frequentemente invadidas, expropriadas ou comprometidas para fins agrícolas, minerários e de desenvolvimento urbano. Essa história de deslocamento e supressão resultou em desafios socioeconômicos profundos e na perda de patrimônio cultural para muitas comunidades indígenas.
A Constituição Brasileira de 1988 representou um marco significativo no reconhecimento e na proteção dos direitos indígenas. O Artigo 231 da Constituição reconhece os direitos originários dos povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam e obriga o governo federal a demarcar, proteger e respeitar essas terras. Esta disposição é um pilar do sistema jurídico brasileiro para os direitos indígenas, refletindo um compromisso com a reparação das injustiças históricas e a preservação das culturas indígenas.
A Evolução do Conceito de Marco Temporal
A tese do marco temporal foi inicialmente articulada pelo STF em 2009 no caso Raposa Serra do Sol. Essa decisão marcante envolveu uma disputa sobre a demarcação do território Raposa Serra do Sol em Roraima. O STF decidiu que o Artigo 231 da Constituição Federal se aplicava apenas às terras ocupadas ou reivindicadas pelos povos indígenas no 5 de outubro de 1988. A decisão do tribunal incluiu dezenove condições projetadas para proporcionar segurança jurídica e estabilidade ao processo de demarcação de terras. 1
Após essa decisão, surgiu um debate sobre se as condições estabelecidas no caso Raposa Serra do Sol deveriam ser aplicadas a todos os casos ou permanecer específicas para aquele caso. Finalmente, em 2013, o STF esclareceu que as condições eram específicas para o caso Raposa Serra do Sol e não se estendiam automaticamente a outros processos em que questões semelhantes fossem discutidas. 2
Apesar desse esclarecimento, em 2017, uma opinião da Procuradoria Geral da República determinou que o julgamento do STF e as condições estabelecidas para o território Raposa Serra do Sol deveriam ser seguidos em todos os processos de demarcação de terras indígenas pelo governo federal. 3 Essa opinião efetivamente estendeu o princípio do marco temporal a outros casos, levando a maior incerteza no processo de demarcação e intensificando os conflitos sobre direitos territoriais.
A tese do marco temporal reemergiu em 2019, quando o STF iniciou as deliberações sobre o Recurso Extraordinário 1.017.365/SC, que envolvia uma disputa de terras reivindicada pelo povo Xoclengues na Reserva Biológica Sassafrás, em Santa Catarina. Este caso, discutido sob o tema 1031, foi reconhecido como tendo “repercussão geral”, significando que seu desfecho serviria de precedente para o judiciário e para pelo menos 226 casos semelhantes que estavam suspensos aguardando definição. O julgamento começou em agosto de 2021 e teve 11 sessões antes de ser suspenso em setembro do mesmo ano pelo Ministro Alexandre de Moraes para revisão adicional.
Decisão do STF sobre o Marco Temporal: setembro de 2023
O julgamento no STF foi retomado e, em 27 de setembro de 2023, o STF concedeu o recurso extraordinário, rejeitando a tese do marco temporal por uma maioria de 9 votos a 2.4 O tribunal declarou que o conceito de marco temporal era inconstitucional e rejeitou a noção de uma fronteira temporal restritiva para o reconhecimento das reivindicações de terras indígenas.
De acordo com o Tribunal, “[o] texto constitucional reconhece a existência dos direitos territoriais originários dos indígenas, que lhe preexistem, logo, o procedimento administrativo demarcatório não constitui a terra indígena, mas apenas declara que a área é de ocupação pelo modo de viver da comunidade”.
Consequentemente, o Tribunal decidiu que “[a] proteção constitucional aos “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988 e da configuração do renitente esbulho como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição”.
A decisão do STF foi uma vitória significativa para os defensores dos direitos indígenas, abordando queixas de longa data e reafirmando o compromisso constitucional de respeitar as terras e culturas indígenas.
Lei 14.701/2023: Reestabelecendo o Marco Temporal
Apesar da decisão clara do STF, o Congresso aprovou a Lei 14.701/2023 em 23 de outubro de 2023, que efetivamente adotou o princípio do marco temporal e impôs restrições adicionais à demarcação de terras e à expansão de territórios existentes.
As preocupações de que a abordagem da lei poderia comprometer aspectos únicos da posse tradicional de terras indígenas — essenciais para o bem-estar cultural, físico e ambiental conforme definido pela constituição brasileira e pelo STF — levaram o Presidente Lula a vetar parcialmente a lei, removendo certas disposições. No entanto, o Congresso derrubou a maior parte desses vetos e promulgou a lei em 27 de dezembro de 2023.
A legislação aumenta as preocupações sobre a erosão dos direitos indígenas e acredita-se que agrava a vulnerabilidade das comunidades indígenas ao legitimar atividades criminosas como mineração ilegal, desmatamento, grilagem de terras e tráfico de drogas. Dessa forma, a nova lei é considerada não apenas uma violação dos princípios constitucionais brasileiros, mas também uma infração dos padrões internacionais. Isso inclui a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (UNDRIP), que garante aos povos indígenas o direito de possuir, usar e gerenciar suas terras tradicionais sem restrições temporais, e a Convenção nº 169 da OIT, ratificada pelo Brasil, que estabelece normas para a proteção dos direitos indígenas, incluindo os direitos à terra e à participação nas decisões que afetam seus territórios.
Ações Judiciais e Decisão Controversa do Ministro Mendes
Em 28 de dezembro de 2023, diversas ações judiciais foram ajuizadas desafiando a Lei 14.701/2023. Entre elas, destacam-se as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC 87),5 apresentadas por partidos políticos que apoiam a lei, e as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI 7582, ADI 7583, ADI 7586),6 ajuizadas por grupos indígenas e partidos políticos contrários à lei. Esses pedidos visam invalidar várias disposições da lei e solicitar medidas protetivas urgentes para suspender sua implementação.
Outra ação é a Ação Direta de Omissão (ADO 86)7, apresentada pelo partido Progressistas, baseada na alegação de omissão regulatória relacionada ao § 6º do Artigo 231 da Constituição sobre a exceção para “interesse público relevante da União” à regra estabelecida na disposição constitucional. O pedido solicita a intervenção do STF para abordar essa lacuna e equilibrar interesses constitucionais.
Em 22 de abril de 2024, o Ministro Gilmar Mendes proferiu uma decisão unilateral para suspender as ações judiciais e optar pela mediação e conciliação. 8 Embora Mendes tenha encontrado preliminarmente que várias disposições da lei pareciam inconsistentes com a decisão anterior do STF de setembro de 2023, ele decidiu não abordar diretamente a inconstitucionalidade da lei nem resolver os desafios legais por meio de julgamento tradicional. Em vez disso, ele decidiu, de maneira controversa, encaminhar a questão para uma comissão especial que ele criou para mediação.
De acordo com o Ministro Mendes, essa abordagem visa buscar uma solução consensual que respeite os princípios constitucionais enquanto aborda o cenário legislativo e político em evolução. A comissão, composta por 24 representantes da União, do Congresso Nacional, dos governos estaduais e municipais, da sociedade civil e da população indígena, realizará várias audiências. Ela compilará todos os argumentos, observando áreas de consenso e discordância, e os submeterá à revisão dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal, que, em última instância, tomarão uma decisão sobre o mérito das cinco ações. 9
Além de optar pela mediação, Mendes decidiu manter a lei em vigor durante as disputas legais em andamento, em vez de suspendê-la até que os desafios à lei fossem resolvidos. Essa decisão intensificou ainda mais a controvérsia, uma vez que afeta os direitos das comunidades indígenas e a aplicação das proteções constitucionais.
Críticas à Abordagem de Mediação
A escolha de Mendes por usar conciliação e mediação para tratar de questões constitucionais é incomum. Embora esses métodos sejam padrão para resolver disputas civis, sua aplicação a questões constitucionais e legislativas, especialmente aquelas que envolvem direitos fundamentais, é considerada problemática por muitos.
Organizações da sociedade civil, líderes indígenas e o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) rapidamente manifestaram preocupações de que o processo de mediação possa enfraquecer as salvaguardas estabelecidas por decisões judiciais anteriores. O CNDH expressou “preocupação particular” sobre a tentativa de mediar e reconciliar interesses envolvendo direitos constitucionais, enfatizando que os direitos humanos, incluindo os dos povos indígenas, são inegociáveis e devem ser mantidos sem compromissos. 10
A comunidade internacional também se pronunciou. Em julho de 2024, o Relator Especial da ONU para os Povos Indígenas, José Francisco Calí Tzay, emitiu uma declaração condenando a tese do marco temporal e sua aprovação pelo Congresso do Brasil por meio da Lei 14.701/2023. Ele enfatizou que a tese violaria normas internacionais de direitos humanos que reconhecem os direitos dos povos indígenas às suas terras com base no uso e posse tradicional, sem restrições temporais. Tzay também destacou o impacto ambiental, apontando que atividades permitidas pela lei, como mineração e desmatamento, poderiam comprometer severamente as metas climáticas e a biodiversidade do Brasil.11
Resumo dos Desenvolvimentos Atuais
O debate em curso sobre o marco temporal e a Lei 14.701/2023 destaca o conflito entre interpretações legais, direitos indígenas e pressões políticas no Brasil. A escolha do STF de optar pela conciliação em vez de invalidar diretamente a lei gerou, compreensivelmente, controvérsia.
A primeira audiência de conciliação ocorreu no dia 5 de agosto, estabelecendo o cenário para futuras sessões. Audiências adicionais estão agendadas para 28 de agosto, 9 de setembro e 23 de setembro. Esses encontros abordarão a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, convenções internacionais de direitos humanos e possíveis emendas à Lei do Marco Temporal, baseando-se em debates anteriores e interpretações do STF.
À medida que o processo avança, o impacto total dessas decisões se tornará mais claro. No entanto, é evidente que a resolução dessa questão terá consequências significativas para a proteção dos territórios indígenas, a integridade do marco legal brasileiro e o compromisso do país com os direitos humanos e a sustentabilidade ambiental.
Notas:
1 Petição 3388 / RR – RORAIMA, STF, Julgamento de 19 de março de 2009.
2 Petição 3388 / RR – RORAIMA, STF, Decisão sobre Embargos de Declaração, 23 de outubro de 2013.
3 Parecer N. 001/2017/GAB/CGU/AGU, Processo: 00400.002203/2016-01, 19 de julho de 2017.
4 Recurso Extraordinário 1.017.365 / SC – SANTA CATARINA, STF, Julgamento de 27 de setembro de 2023.
5 Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 87 – foi ajuizada pelo Partido Progressistas, pelo Partido Republicanos e pelo Partido Liberal. A ação busca afirmar a constitucionalidade da Lei 14.701/2023 em sua totalidade, especialmente no que diz respeito às disposições vetadas pelo Presidente.
6 Ação Direta (ADI) 7.582 – foi ajuizada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e pelos partidos Socialismo e Liberdade e Rede Sustentabilidade. A ADI 7.583 foi ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e pelo Partido Verde (PV), e a ADI 7.586 foi ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT).
7 Ação Direta de Omissão (ADO) 86, ajuizada pelo Partido Progressistas (PP).
8 Decisão Conjunta ADC 87, ADI 7.582, ADI 7.583, ADI 7.586 e ADO 86, Ministro Gilmar Mendes, 22 de abril de 2024.
9 Entenda as audiências de conciliação do STF sobre a lei do Marco Temporal, Supremo Tribunal Federal site.
10 Nota Pública Nº 8/2024 do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), 10 de maio de 2024.
11 Declaração do Relator Especial da ONU para os Direitos dos Povos Indígenas, José Francisco Calí Tzay, 11 de julho de 2024.
Autora: Natalie Rosen
Foto de capa: Antônio Cruz/Agência Brasil